Órfãos do feminicídio: audiência pública debateu a efetivação de políticas públicas

09/04/24 10:07

A costureira Suzana (nome fictício) já recebia ameaças de seu ex-marido, que não aceitou o fim da relação, há meses. Através da Justiça, ela conseguiu medida protetiva, que foi infringida pelo menos duas vezes. Na terceira vez que seu ex-companheiro descumpriu a decisão judicial, encontrou a costureira sentada na calçada de sua casa, conversando com vizinhos. Ao perceber a presença dele, correu e se trancou dentro do seu imóvel. Ele, contudo, arrombou a porta e entrou atirando. Suzana foi morta na frente de seus dois filhos, de 7 e 12 anos de idade, que ao verem o ataque do pai, deitaram-se no chão com medo de também serem alvos.

O crime narrado acima aconteceu em Juazeiro do Norte, em 2019. As duas crianças passaram a viver sob os cuidados da avó e da irmã da vítima, sem jamais esquecer a noite em que sua mãe foi assassinada. “São crianças, adolescentes e adultos que precisam reconstruir suas vidas diante da ausência repentina da mãe, da referência que tinham, do zelo, do cuidado e do amor materno”, lembra a vereadora de Fortaleza, a professora Anna Karina (Psol).

Ontem (08), a pedido do nosso mandato, a Comissão de Direitos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC/Alece) realizou uma audiência pública para debater políticas para os órfãos do feminicídio. A iniciativa discutiu, entre outras questões, a regulamentação da Lei Federal 14.717, de 31 de outubro de 2023, que institui pensão especial aos filhos e dependentes crianças ou adolescentes, órfãos em razão do crime de feminicídio, cuja renda familiar mensal per capita seja igual ou inferior a 25% (um quarto) do salário-mínimo. “É importante pensar os seus desafios e as iniciativas em curso já existentes no estado”, reforça Renato.

O debate foi requerido em parceria com a vereadora Anna Karina e contou com as participações da defensora pública Gina Kerly Moura, supervisora da Rede Acolhe, da advogada Rose Marques, representante do Instituto Maria da Penha, da promotora de Justiça Lívia Cristina de Araújo, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), e do advogado Hilton Cohen, coordenador jurídico da Secretaria dos Direitos Humanos.

O debate é urgente até mesmo pela situação agravante em todo o país. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram notificados 1.437 feminicídios. Com base na taxa brasileira de fecundidade estimada pelo IBGE, estima-se que 2.529 crianças e adolescentes perderam suas mães em 2022.

Anna Karina explica que feminicídio “é o assassinato de uma mulher pelo simples fato de ser mulher”, define. Os motivos mais comuns são o ódio, desprezo, ou o sentimento de perda do controle da propriedade sobre as mulheres. “Infelizmente, são comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro. Fruto do machismo e da misoginia”, acrescenta.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado este ano, os registros policiais de feminicídios cresceram 6% em 2022, resultando em 1.437 mulheres assassinadas, sendo que 61% eram negras e 38% brancas. Já no passado, um novo aumento: 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio. Em média, há três crianças órfãs por cada mulher morta por feminicídio.

No Ceará, no ano passado, foram registrados 264 casos de crimes letais intencionais contra mulher, sendo destes 42 classificados como feminicídio, enquanto em 2022 foram 29, um aumento de 45%. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS). “É claro que o número pode ser ainda maior devido a subnotificação. Em muitos desses casos as mulheres podem ter deixado crianças órfãs", destaca Renato.

Texto alternativo

Diante da gravidade, a Secretaria das Mulheres e da e a própria SSPDS lançaram um sistema para solicitação de medidas protetivas de urgência na internet. Atualmente, há 10 unidades da Delegacia de Defesa da Mulher em funcionamento no estado do Ceará. “Para além disso, é importante ampliar os mecanismos de proteção”, enxerga o parlamentar.

Entre os encaminhamentos da audiência pública, serão enviados dois ofícios, um deles para a Casa Civil da Presidência República, cobrando a publicação do decreto que regulamenta a Lei Federal 14.717. O outro é direcionado ao Governo do Estado, que pede o envio da mensagem que cria o programa Ceará Acolhe, que além de instituir políticas de apoio aos órfãos do feminicídio, abrange crianças e adolescentes que perderam seus pais ou responsáveis pela Covid-19.

Políticas baseadas em evidências

No ano passado, aprovamos a Lei 18.426/2023, de nossa autoria e da ex-deputada e atual senadora Augusta Brito (PT), que cria o Dossiê Mulher. A proposta busca, a partir de dados estatísticos, subsidiar a elaboração de políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher. Nela, está prevista a sistematização periódica dos números de mulheres vítimas de violência atendidas pelas políticas públicas no Ceará, detalhando indicadores como estado civil, idade, raça, escolaridade, trabalho e renda e número de filhos.

Segundo Renato, a propositura tem por objetivo permitir que a sociedade tenha acesso a informação de qualidade e possa cobrar uma política pública mais efetiva. “Esse diagnóstico é capaz de fornecer um bom mapa da situação, algo imprescindível para a elaboração de qualquer boa política pública”, reforça. O desafio atual é implementar a lei, que foi publicada em julho do ano passado. Semana passada, o deputado esteve em reunião com o titular da SSPDS, Samuel Elânio de Oliveira Júnior, ao lado do Comitê de Prevenção à Violência da Alece, buscando justamente a implementação do Dossiê Mulher. O lançamento está sendo pensado para o próximo dia 10 de outubro.

Áreas de atuação: Direitos Humanos