CDHC recebeu mais de 160 denúncias de tortura e maus tratos no sistema prisional, entre 2020 e 2023

03/10/23 18:00

De 2020 até setembro de 2023, a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC-Alece) recebeu 167 denúncias de casos de tortura, violência policial e maus tratos dentro do sistema penitenciário cearense. Entre as queixas acolhidas pelo órgão legislativo estão os casos de restrições dos direitos às visitas, à alimentação e à higiene, além de casos mais graves, como tratamento cruel aos internos.

Toda essa grave situação motivou uma audiência pública, na última segunda-feira (02), que foi solicitada pelo presidente da Comissão, o deputado estadual Renato Roseno (Psol), e subscrita pelos deputados De Assis Diniz e Missias Dias. O debate contou com familiares de presos, organizações da sociedade civil, membros do judiciário, promotores de justiça e policiais penais.

A situação não é nova. Pelo contrário. Em 2019 e 2021, o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), respectivamente, ao verem de perto a situação das unidades prisionais do estado, expuseram práticas institucionalizadas de tortura.

Em relatório, apontaram práticas criminosas como quebras de metacarpos dos internos, enforcamentos, inalação de gás, pisões na cabeça, além de exposição a situações humilhantes e vexatórias. Outros graves problemas vistos foram superlotação, a falta de condições sanitárias adequadas, a ausência de assistências jurídica e médica, além da escassez de programas de ressocialização efetivos.

Em setembro do ano passado, como resultado de uma inspeção conduzida pela Corregedoria de Presídios do Poder Judiciário, em colaboração com o Ministério Público e a Defensoria Pública, ocorreu o afastamento preventivo e prisão de policiais penais e da direção da Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II). Essa ação foi motivada pela constatação de práticas de tortura envolvendo mais de 70 detentos na mencionada unidade.

Texto alternativo

Mais recentemente, a Defensoria Pública do Estado do Ceará denunciou que os internos da Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva (UP Itaitinga IV) são submetidos a práticas de tortura, como serem colocados de cabeça para baixo e terem seus testículos apertados. Outros relatos indicam que os detentos são obrigados a comerem pão com sabão, beber água misturada com água sanitária e sabonetes líquidos. Também não têm acesso à alimentação regular, aos produtos de higiene ou à água potável.

As denúncias também apontam para a existência de um padrão de lesões corporais, incluindo ferimentos na cabeça, mãos e dedos dos presos, o que indica que a tortura está sendo empregada sistematicamente como um método preventivo pela doutrina de segurança penitenciária. Por meio do que dizem às famílias, estes episódios ocorrem em, pelo menos, seis presídios da Região Metropolitana de Fortaleza.

Esta situação ganhou repercussão, em junho, após uma série de matérias do jornal Folha de S. Paulo expor os casos. As publicações ainda dão conta que práticas semelhantes acontecem em outros quatro estados — Rio Grande do Norte, Roraima, Amazonas e Pará — que têm em comum a presença de uma Força Tarefa de Intervenção Penitenciária.

“A violência que acontece nas instituições não está fora da sociedade. Ela está na sociedade e desumaniza toda a sociedade”, reforça Renato. Segundo o parlamentar, as denúncias de tortura, tratamentos cruéis e outras violações sempre foram recorrentes, mas tem se intensificado. “Muitas vezes a pena e a dor transcende a pessoa do apenado e, lamentavelmente, chega à família, aos filhos, à esposa, às mães”, completa o deputado.

Saúde mental dos agentes

Por outro lado, foi constatado que há um progressivo quadro de adoecimento dos agentes. Entre 2021 e 2022, 105 policiais penais pediram licença por questões de saúde mental. Segundo o Sindicato dos Policiais Penais e Servidores do Sistema Penitéciário do Estado do Ceará (Sindppen), de um efetivo de aproximadamente 3.500 agentes, aproximadamente 900 já pediram afastamento das atividades para tratamento.

A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alece acolhe diversas denúncias sobre as más condições de trabalho nas unidades prisionais para os seus agentes, assédio moral, quadro reduzido de servidores e perseguição aos policiais penais afastados por doenças mentais. “Os encarcerados são pessoas as quais temos responsabilidade profissional de cuidar de sua execução da pena, resguardar e caminhar para sua ressocialização. Mas nada vai mudar se a atual gestão continuar tratando tudo e todos da forma como está tratando”, reforçou Joélia Silveira, presidente do Sindppen.

Mudanças

A audiência apontou para uma série de propostas e recomendações. Uma das mais importantes é a criação do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Estado do Ceará, que garante condições adequadas para apuração e investigação das denúncias. “É um importante instrumento técnico para a prevenção à tortura, com peritos especializados”, reforçou Roseno.

A proposta acolhe demandas de representantes da sociedade civil. Jefferson Franklin Nascimento, da Pastoral Carcerária, por exemplo, defendeu a criação de uma Frente de Fiscalização nas unidades prisionais cearenses, para que sejam identificados indícios de tortura em pessoas privadas da liberdade. “A nossa Pastoral luta todos os dias para que nós tenhamos sempre a garantia da lei e a sua devida aplicação. Se a pessoa está cumprindo por um crime que cometeu aqui fora, não pode ser penalizada além da lei. Porque ele já está lá para cumprir”, pontuou.

Outras propostas estão a regulamentação das câmaras corporais dos policiais penais, garantindo o Ministério Público e a Defensoria Pública como órgãos fiscalizadores com acesso, em tempo real, das imagens coletadas. Soma-se a este esforço a criação de um plano emergencial de protocolo e apuração efetiva dos casos. Da audiência, também surgiu a necessidade de o Governo do Estado criar um canal oficial seguro para acolher estas denúncias.

As entidades também pedem maior transparência dos dados do censo prisional; a regulamentação do uso da força e dos meios de contenção, bem como do ingresso das forças de segurança no sistema penitenciário; a garantia do acesso à informação para as famílias sobre os internos do sistema e a efetiva participação da sociedade civil na construção das políticas de segurança pública e necessidade de consolidação de diálogo interinstitucional para a proposição de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com base nas recomendações do CNJ.

Áreas de atuação: Direitos Humanos, Segurança pública