Preta Tia Simoa: a resistência da memória contra o esquecimento oficial

10/08/21 10:46

"No Brasil, mulheres, principalmente as negras, nem sempre puderam falar, escrever e quanto mais publicar sobre si mesmas. Tampouco tiveram suas vozes plenamente respeitadas por aqueles que delas falaram, escreveram e publicaram; na maioria, homens brancos" - trecho do prefácio “Resgatar Nossa Memória”, escrito por Jaqueline Gomes de Jesus, no livro “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis”, da escritora cearense Jarid Arraes.

O regime racista, patriarcal e escravocrata que marcou o Brasil Colônia ainda ecoa e circula nas veias da história do País. Uma característica disso é o apagamento histórico de nomes de mulheres que foram imprescindíveis para a luta contra a escravidão e o tráfico de negros e negras. Uma dessas personagens foi Preta Tia Simoa, uma importante liderança na mobilização dos jangadeiros contra o transporte de negros escravizados para a capital da província do Ceará, no século XIX.

Como forma de celebrar sua luta e sua memória, o mandato É Tempo de Resistência apresentou o projeto de lei 335/21, que institui na data de 25 de julho o Dia da Preta Tia Simoa e da Mulher Negra. A proposta prevê a realização da Semana Preta Tia Simoa de Combate à Discriminação Contra Mulheres Negras, sempre na primeira semana de agosto no Estado do Ceará.

Ainda que a historiografia não forneça informações amplas e precisas sobre a biografia de Tia Simoa, importante personagem na história de mulheres negras no estado, sabe-se que ela foi casada com José Luiz Napoleão e, junto com o marido, deu impulso à Greve dos Jangadeiros que ocorreu no Ceará no século XIX. Assim como muitas companheiras de luta contra a escravidão, ela teve seu nome e sua luta omitidos dos relatos formais e da historiografia oficial sobre aquela época.

Em articulação com os diferentes movimentos de mulheres negras que compõem a luta pela memória e pela igualdade racial no Ceará, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL) apresentou o PL 335/21 com o objetivo de “chamar a atenção para a situação das mulheres negras, figuras mais exploradas e oprimidas da sociedade, e para destacar os indicadores sociais, econômicos, políticos, que denunciam suas condições e posições na história”.

Com a proposta, o calendário oficial do Estado do Ceará passará a contar com a Semana Preta Tia Simoa de Combate à Discriminação Contra Mulheres Negras, que tem, entre seus objetivos, a promoção da visibilidade de raça e gênero e o fortalecimento das ações contra o racismo, o sexismo e todas as formas de violência contra as mulheres negras; além da preservação da memória e da contribuição dos povos afrodescendentes, em especial das mulheres negras, para a formação social do estado do Ceará.

O projeto também tem como propósito a conscientização da comunidade acerca da responsabilidade do poder público e da sociedade como um todo para com a promoção da equidade de raça e gênero e com o pleno exercício da cidadania pelas mulheres negras. A ideia é promover o debate acerca da condição da mulher negra na sociedade brasileira em intersecção com os marcadores de raça, gênero, sexualidade e condição socioeconômica; bem como estimular reflexões sobre estratégias de prevenção e combate a todas as formas de violência que atingem as mulheres negras.

"Por conta das dificuldades de acesso à escolaridade e formação profissional, as mulheres negras são a maioria no trabalho doméstico e em outros serviços de baixa remuneração e que exigem menor qualificação. Desse modo, a população negra é impactada por ter maior participação na informalidade, sendo os primeiros extratos da população a serem afetados em qualquer crise", avalia Renato Roseno na justificativa do projeto de lei.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que mulheres negras estão 50% mais suscetíveis ao desemprego do que outros grupos. Segundo o Ipea, enquanto o desemprego entre mulheres negras subiu 80% em relação ao período anterior à crise econômica, entre homens brancos o aumento foi de 4,6 pontos percentuais – entre homens negros, houve crescimento de 7 pontos percentuais.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, 61,8% das vítimas de feminicídio no Brasil foram mulheres negras. Esse grupo, no entanto, compõe apenas 28% da população, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) feita em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As mulheres negras, portanto, são alvos de intersecções de violências e discriminações, ora aparecendo como vítimas preferenciais dos homicídios, ora tendo suas histórias completamente invisibilizadas, como é o caso de Preta Tia Simoa.

“Verificamos que o processo abolicionista no Ceará, na realidade, não buscou a liberdade para os negros e negras, mas uma readaptação do modelo exploratório, fazendo com que fossem assegurados os interesses da elite. A relevância do protagonismo de Tia Simoa demonstra um exemplo de luta por liberdade, mas que ainda não veio assegurada com a abolição”, destaca a coordenadora municipal do Movimento Negro Unificado (MNU) e articuladora nacional da Coalizão Negra por Direitos, Daniela Silva.

Nesse contexto, o direito à visibilidade é reivindicado para que essas mulheres negras possam se inscrever na história. É o caso, além de Tia Simoa, de nomes como Aqualtune, Anastácia, Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Luisa Mahin, Eva Maria de Bom Sucesso, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Laudelina dos Santos, Antonieta de Barros, Almerinda Farias Gama e, mais recentemente, de intelectuais e feministas negras como Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento e Marielle Franco.

“Neste momento em que lembramos destas importantes mulheres colocamos o Ceará nesta centralidade do lugar e papel da mulher negra na história do Ceará. Falo aqui de Preta Tia Simoa e sua luta por liberdade no Ceará do século XIX, que é uma mulher negra que a historiografia oficial não cita comumente", destaca Zuleide Queiroz, professora, mulher negra, integrante do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec) e do MNU/CE.

De acordo com Zuleide, Preta Tia Simoa foi fundamental para a abolição da escravização de negros e negras. "Foi uma liderança na mobilização de trabalhadores jangadeiros contra o transporte de negros escravizados para a capital da província do Ceará. Era uma mulher negra liberta que sabia da sua tarefa – libertar outros negros e não ter medo. Uma legislação estadual que aponta para estabelecer uma política de reparação é fundamental pois nós negros sempre dizemos 'É tudo pra ontem!'", defende.

Lembrar é fazer história, sobretudo em meio às disputas de narrativas em torno do epistemicídio (desvalorização da pessoa negra pelo apagamento e negação do seu existir) alimentado pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Propor o resgate de nomes como Tia Simoa é importante porque nossa história foi e é contada por aqueles que foram os próprios devastadores do povo negro. Toda história de abolição de regimes escravistas é muito mais profunda do que demonstram as narrativas oficiais. (Texto: Evelyn Barreto / Foto: reprodução)

Áreas de atuação: Mulheres, Raça e etnia