De menor a sujeito de direito: a importância histórica do ECA pra a infância e a adolescência

13/07/20 10:00

"As coisas que não têm nomes são mais pronunciadas por crianças". Manoel de Barros.

No dia 13 de julho de 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA), lei 8069/90, completa 30 anos de vigência. Por que é tão importante celebrar essa data e falar sobre essa lei?

Para tentar responder a essa pergunta, é necessário tomar duas questões iniciais: nossa construção histórica e o lugar da infância e da adolescência na nossa sociedade. Primeiro, precisamos lembrar nossa herança colonial e escravocrata e refletir como e o quanto essa herança marcou nossa formação como sociedade e definiu os lugares, os papéis e as relações de poder e subalternidade. Assim, podemos entender que a vida é marcada por condições sociais que não alcançam a todos e todas da mesma maneira; e podemos imaginar que também as crianças e adolescentes não vivem as mesmas condições, sejam materiais, sejam de oportunidades.

Podemos entender melhor essa ideia a partir da legislação que antecede o ECA, o Código de Menor. Ele assim expressava: "Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei". A ideia era de que havia uma infância "regular" e uma infância "irregular". A criança e o adolescente estavam sob a tutela do Estado. Assim, muitas vezes a situação de pobreza e abandono poderiam levar um juiz a ter poderes sobre a vida dessa criança e decidir como, onde e com quem ela ficaria, sem qualquer garantia contida na lei.

Também é importante ter em conta que o Código de Menor expressava valores e conceitos do período em que o país viveu sob um regime autoritário. Com essa memória, é possível compreender a importância histórica do ECA como um documento legal que rompe paradigmas e olha muito adiante. A começar por seu processo de proposição, que se realiza fora parlamento e com a participação de crianças e adolescentes, por meio do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, num protagonismo histórico.

Algumas ideias trazida pela nova legislação evidenciam sua importância. A criança e o adolescente não são mais vistos a partir da ideia de "situação irregular", mas como sujeito de direito e em situação peculiar de desenvolvimento. O Estado não mais terá a tutela sobre esses sujeitos, que serão de responsabilidade da família, do estados e da sociedade.

O ECA é uma lei para todas crianças e adolescentes que deverão ter garantidos o direito à vida, saúde, educação, cultura, lazer, proteção. Ele inaugura uma nova percepção para a afirmação desses direitos através da ideia de um sistema de garantias de direitos, que articula todos os atores públicos e da sociedade civil, nos níveis municipal, estadual e federal. Também propõe a criação de novos espaços de articulação, participação e monitoramento das políticas como os conselhos tutelares, os conselhos de direitos, as conferências e os fóruns. Além disso, o ECA afirma, no seu artigo 4°, a ideia de que esses sujeitos de direito deve ter prioridade absoluta.

Nossos desafios nesses 30 anos

O fato de existir um marco legal que reconhece os direitos como sendo para todas as crianças e adolescentes e que pode ser tomado como referência para a elaboração e efetivação das políticas públicas, em si, é um um grande avanço. Assim, nenhuma escola pode, por exemplo, negar matrícula de uma criança e adolescente por qualquer razão. Ou um juiz não tem o direito, vendo a situação de pobreza de uma família, separar a criança ou adolescente dessa família. Cabe ao estado responder com políticas públicas às situações onde esses direitos forem violados.

Mesmo assim, nesses 30 anos, muitos obstáculos tem se colocado no caminho da plena efetivação do ECA. As elites nunca aceitaram muito bem essa lei porque não aceitam a ideia de que todos devem ter os mesmo direitos garantidos. Os conceitos herdados do Código de Menor nunca foram totalmente superados e nem sempre aqueles que teriam a responsabilidade de efetivar os direitos incorporaram as mudanças trazidas pelo ECA.

Ao contrário, trataram muitas vezes de estigmatizar, fortalecendo ideias como "é uma lei pra defender bandidos", " é contra o direito dos pais de educarem os filhos", "é uma lei muito avançada para o Brasil". O fato é que a prioridade absoluta poucas vezes fez parte da gestão de diferentes governos, apesar de assinarem cartas compromisso para defender o ECA.

Em que momento estamos

Nós nos encontramos em um momento muito delicado, onde a ideia de direito sofre ataques de toda ordem, seja na tentativa de destruir conquistas e desmontar mecanismos de proteção e participação, seja no campo das disputas ideológicas, onde tentam se consolidar segmentos de direita e de extrema direita.

A pandemia do Covid-19 não só revelou as profundas desigualdades como temos o prenúncio de tempos muitos difíceis, que impactarão fortemente sobre as crianças e adolescentes. Isso exige afirmar a importância e atualidade do Eca. Incorporar cada vez mais os temas que foram ganhando força nesses 30 anos e não eram tão nítidos nos primeiros anos, como racismo, gênero, mídias digitais entre outros.

E, por fim, pensando que ainda vivemos em uma sociedade de adultos, nós abrimos mão da participação real das crianças e adolescentes, que estão cada vez mais protagonizando experiências fantásticas e que têm muito a dizer ao mundo e sobre o mundo que desejam e têm por direito.

Assim, VIVA OS 30 ANOS DO ECA! "Com os meninos e o povo no poder! Eu quero ver".

Margarida Marques é militante dos direitos da infância e da adolescência e assessora do mandato É Tempo de Resistência, do deputado estadual Renato Roseno (PSOL)

Áreas de atuação: Direitos Humanos, Adolescência, Infância