Autismo: é crime dificultar ou impedir às pessoas com deficiência o acesso a serviços de educação e saúde

31/03/15 02:00

Detalhe do rosto de uma criança olhando dados sobre a mesa, cujas letras formam a palavra

Constitui crime, previsto em lei há 25 anos, punível com reclusão de um a quatro anos, além de multa, mas continua sendo praticado contra as pessoas com autismo e outras deficiências: recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta; recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência.

Durante a audiência pública, solicitada pelo deputado Renato Roseno (PSOL), realizada nessa segunda-feira, 30 de março, na Assembleia Legislativa do Ceará, em alusão ao Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, instituições e pais de pessoas com autismo reivindicaram o cumprimento da legislação que garante uma inclusão pra valer das pessoas com deficiência. Os incisos acima constam na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências.

A inclusão, por meio do acesso à educação e à saúde, está prevista em vários instrumentos legais, mas precisa ser posta em prática efetivamente. O presidente da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraçar), Alexandre Mapurunga, comemora que o movimento em defesa de quem tem esse transtorno do desenvolvimento tenha evoluído para a cobrança de direitos, pois, antes, o discurso predominante era de cuidado e de pena por ter alguém com autismo na família, mas destaca que ainda é necessário combater a exclusão e o abandono. "Muitos dos autistas excluídos no passado vivem no abandono. As crianças com autismo têm uma vulnerabilidade maior de sofrer o abandono. Elas precisam de apoio jurídico e direito à vida em comunidade", argumentou, defendendo que a inclusão começa dentro de casa.

Sem desmerecer a Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção às Pessoas do Espectro Autista, a representante do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa com Deficiência, Linda Lemos Bezerra, foi taxativa. "Não tem nenhuma novidade, é cumprir a lei", disse, compartilhando com todos o artigo terceiro, que cita como direitos da pessoa com autismo:

I - a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;

II - a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração;

III - o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo:

a) o diagnóstico precoce, ainda que não definitivo;

b) o atendimento multiprofissional;

c) a nutrição adequada e a terapia nutricional;

d) os medicamentos;

e) informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento;

IV - o acesso:

a) à educação e ao ensino profissionalizante;

b) à moradia, inclusive à residência protegida;

c) ao mercado de trabalho;

d) à previdência social e à assistência social.

Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º, terá direito a acompanhante especializado.

A representante do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa com Deficiência, Linda Lemos Bezerra, questionou que muitos pais precisem pagar pelo que é uma obrigação do poder público, referindo-se aos serviços especializados em saúde e educação para as pessoas com autismo. Nos serviços de saúde, falta até medicação específica de uso contínuo para esse público. Representando a Fundação Projeto Diferente, Arlete Rebouças denunciou que o medicamento Risperidona está faltando em Fortaleza, nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Centro de Especialidades Médicas José de Alencar (Cemja) e Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami).

Para superação de desafios

"Há muito o que fazer e quase nada", observa a promotora de Justiça Antonia Lima de Sousa, reforçando o entendimento geral de que a legislação para assegurar direitos já existe, faltando ser posta em prática. A representante do Ministério Público, que também é mãe de uma pessoa com autismo, considera um absurdo que os donos dos estabelecimentos de ensino "convidem" as crianças a deixarem a escola fazendo cobrança de taxas ou usando outras formas de forçar os pais a tirarem o filho dali. Ela também vê como uma grande dificuldade envolver os profissionais de diferentes áreas em torno do cuidado de um indivíduo. “É um desafio colocar todos os profissionais para dialogarem”.

O mesmo sentimento foi compartilhado pelo professor Jefferson Falcão Sales, também pai de uma menina com autismo. "Os profissionais não sabem trabalhar juntos", questionou. Foi apenas um dos vários questionamentos que ele lançou ao público. "Quantos terapeutas ocupacionais tem aqui? Quantos diretores de escola tem aqui? Quantos psiquiatras tem aqui? Quantos neuropediatras tem aqui? Quantos políticos tem aqui?" Havia apenas uma diretora de escola, uma terapeuta ocupacional, uma psiquiatra, um deputado estadual, em um auditório lotado de familiares e pessoas com autismo. "A luta ainda é solitária", resumiu.

Para Jefferson Falcão, que se define como um militante da causa pelo autismo, mesmo onde existe inclusão, ela precisa de ajustes, como garantia da presença de um acompanhante especializado em sala de aula. "Há escolas particulares em que o pai paga até R$ 1.200 por acompanhante para o filho", aponta. Em outros estabelecimentos de ensino, o acompanhante não existe, sob a justificativa de que não faz parte do projeto pedagógico. "Na verdade, não faz parte do projeto financeiro dessas escolas", contesta Jefferson.

Questionamentos em série

Como as escolas estão se adaptando para promover a inclusão e integração na educação regular? Como o poder público tem acompanhado esse processo? Como os Caps estão tratando as pessoas com autismo, se faltam profissionais especializados e medicamentos? O representante da Fundação Projeto Diferente, Pedro Forquim, também formulou vários questionamentos, acentuando o desafio da inclusão verdadeira.

Muitas perguntas ficaram sem respostas porque não havia na audiência representantes de órgãos e instituições, como a Secretaria Municipal de Educação (SME), a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a Secretaria da Educação Básica do Estado (Seduc), a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), a Coordenadoria de Defesa da Pessoa com Deficiência e o Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará.

As escolas, muitas vezes, se recusam a aceitar um aluno com autismo alegando que não estão preparadas para lidar com a situação. "Nenhuma mãe se prepara para ter um filho autista. A gente se prepara na prática, como as escolas também devem se preparar", observou Fernanda Cavalier, representante da Organização Fortaleza Azul, uma das mais novas instituições que atuam com a questão do autismo no Ceará, oferecendo cursos, palestras e oficinas nas escolas.

A realidade que a organização observa ainda é de limitações de vagas e cobrança de taxas extras nas unidades de ensino e ausência de terapeutas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e psicólogos especializados nos serviços de saúde. O que há disponível na rede pública é pouco para a grande demanda existente e muitos não podem pagar os valores cobrados nos serviços privados. "O prognóstico é muito melhor se tiver essa atenção precoce".

Inclusão radical

Além do diagnóstico precoce, o tratamento precisa ser intensivo. A criança com autismo necessita ser atendida todo dia por um terapeuta ocupacional e um fonoaudiólogo – exemplifica a presidente da Casa da Esperança, a psiquiatra Fátima Dourado. "Precisamos de tudo, ao mesmo tempo, agora". Mesmo ela, que constatou a evolução na relação que a sociedade e os profissionais de saúde e educação passaram a estabelecer com o autismo, considera que o despreparo ainda é surpreendente.

Na consulta ao dentista ou no consultório médico, é comum o uso de sedativos com os pacientes com esse transtorno do desenvolvimento. "Os profissionais sentem medo. É uma situação ainda dramática o desconhecimento e a estranheza deles", reconhece a presidente da Casa da Esperança, instituição com maior experiência na área no Estado, fundada em 1993. Pelo histórico de constatações, ela se diz radicalmente a favor da inclusão. "Nós temos que tornar esse mundo mais autista".

A representante da Coordenadoria de Pessoas com Deficiência da Prefeitura de Fortaleza, Ana Beatriz Praxedes, também defendeu a inclusão de forma radical, aproveitando para questionar o que avalia como exclusão absoluta promovida pelas escolas privadas. A presidente da Casa da Esperança, Fátima Dourado, fez questão de reconhecer que tem conhecimento de muitos casos de crianças de classe média com autismo que estão migrando para a rede municipal de educação porque os professores estão hoje mais capacitados para atender aos alunos com deficiência.

Da solidão...

"É necessário o empenho de todos para promover o acolhimento, o encontro, a solidariedade em uma concreta obra de apoio e de renovada promoção da esperança, contribuindo de tal modo a romper o isolamento e, em muitos casos, também a marca que gravam sobre pessoas afetadas pelos distúrbios do espectro do autismo, bem como muitas vezes sobre suas famílias".

Reverberou na audiência pública da Assembleia Legislativa o apelo do Papa Francisco, durante discurso feito em novembro de 2014, aos participantes da 29ª Conferência Internacional promovida pelo Pontifício Conselho da Pastoral para os Agentes de Saúde, que refletiu sobre o autismo.

"Quando eu comecei, não se falava em autismo, parecia que estávamos falando de alienígenas", lembrou a presidente da Casa da Esperança, Fátima Dourado, para falar da solidão a que eram condenadas as pessoas com autismo, solidão que ainda se impõe para muitos. "Não havia diagnóstico precoce nem tardio. As escolas faziam um enorme favor em receber as crianças. Os pais precisavam pagar muito para que os filhos fossem recebido". Mesmo assim, não era garantia de longa permanência, nem na escola regular, nem na escola especial.

...Para um outro olhar sobre o transtorno

“Muitas vezes, não queremos ‘aquele olhar’ para os nossos filhos”, verbalizou o representante da Fundação Projeto Diferente, Pedro Forquim, como porta-voz de muitos familiares presentes à audiência pública sobre o autismo ou que assistiram ao debate pela TV Assembleia ou ouviram pela Rádio FM Assembleia. Pedro é também pai de uma criança com autismo e se referia ao olhar de estranhamento, afastamento e até mesmo repulsa diante de alguém com esse transtorno de desenvolvimento.

Mãe de uma menina com autismo, moradora de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza, Ana Vládia abordou a necessidade de que os pais procurem também apoio para cuidar bem das crianças com autismo e de si mesmos. “Eu só consegui chegar até aqui com a Marina porque procurei uma terapia”, revelou, emocionada e emocionando.

“Não é fácil ter um filho autista, até entender o que ele representa na vida da gente”, afirmou Paulo Assunção, pai de um menino com autismo. Assessor do deputado Elmano de Freitas (PT), ele falou da experiência pessoal, mas também propôs a criação na Assembleia Legislativa de uma Frente Parlamentar em Defesa das Pessoas com Deficiência.

Para quem tem duas filhas com autismo e mora no interior do Ceará, as dificuldades ainda parecem maiores. Daniele Lima, representante da Associação dos Pais de Autistas de Sobral, defendeu o fortalecimento dos Caps apontando como única opção de tratamento nas cidades longe da capital. Mesmo assim, ela acredita no potencial transformador de cada um para uma mudança de realidade coletiva. “O mundo que eu quero começa em mim”, concluiu, parafraseando o pacifista indiano Mahatma Gandhi.

Encaminhamentos e iniciativas

O presidente da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraçar), Alexandre Mapurunga propôs como encaminhamento reivindicar e acompanhar a estruturação e implantação de centros especializados de referência e centros-dias no interior e na capital.

O representante da Fundação Projeto Diferente, Pedro Forquim, sugeriu à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia que encaminhasse proposta para que os projetos sociais na área do autismo pudessem ser contemplados com a lei de incentivos fiscais do Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI), por meio do qual empresas apoiassem financeiramente iniciativas transferindo para elas os recursos da renúncia de impostos feita pelo Governo do Estado. Ele também propôs a viabilização de parcerias com o Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará possibilitando o acompanhamento especializado em sala de aula.

Para garantir o direito à educação e à saúde, a representante do Ministério Público, Antonia Lima de Sousa, orientou acionar as Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Adolescência existentes em Fortaleza, Caucaia, Sobral e Juazeiro do Norte e a Promotoria de Defesa da Saúde Pública em Fortaleza. A promotora de Justiça sugeriu também, para reivindicar o acompanhamento especializado nas escolas, a realização de um encontro entre representantes da Secretaria Municipal de Educação, Secretaria da Educação Básica do Estado e Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará.

A representante da Coordenadoria de Pessoas com Deficiência da Prefeitura de Fortaleza, Ana Beatriz Praxedes, assumiu o compromisso de verificar qual o problema para a falta da medicação específica para pessoas com autismo, o Risperidona, na rede de saúde municipal. Ela afirmou que está sendo providenciada uma licitação visando à contratação de acompanhantes nas salas de aula da rede municipal de educação. "Eu espero ser demandada por vocês, para buscarmos soluções juntos", disponibilizou-se.

Durante a audiência pública em alusão ao Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, duas pessoas com o transtorno de desenvolvimento foram convidadas também para compor a mesa e falar ao público. Os jovens Hélio e William representaram muitos outros como eles que estavam presentes no auditório do Complexo das Comissões Técnicas da Assembleia Legislativa.

A audiência pública foi solicitada pelo deputado Renato Roseno, que também já deu entrada com um projeto de lei que proíbe, em escolas públicas ou particulares, a cobrança de valores adicionais, sobretaxas para matrícula ou mensalidade, de estudantes com qualquer que seja a deficiência, síndrome de Down, transtorno invasivo do desenvolvimento ou outras síndromes ou autismo. (Foto: Agência Brasil)

Áreas de atuação: Saúde, Educação, Infância, Pessoas com deficiência