Por Ângela Pinheiro*
Com esperança redobrada, estamos acompanhando a iniciativa do STF, através do ministro Flávio Dino, de investigar o conteúdo do Relatório da CPI de 2021, do Senado Federal, sobre a Covid-19.
Eis uma oportunidade concreta de se fazer Justiça pelos desmandos que, mais do que assistir, vivenciamos, no manejo da pandemia pelo Governo Federal anterior e seus aliados. A propósito, os crimes em análise no referido inquérito, atribuídos ao ex-presidente, a seus familiares e então auxiliares, na pandemia, não são objeto da inominável proposta de anistia, que seus aliados desavergonhadamente tentam impor no Congresso Nacional. Assim, esse inquérito poderá ser a última possibilidade de responsabilizá-lo juridicamente por tantos crimes.
As implicações são devastadoras: um país enlutado, atônito, (des)governado, acumulando mais de 715 mil mortos pelo vírus; uma quantidade imensa de pessoas com sequelas mais, ou menos, graves por contrair o vírus; a negação de providências necessárias, como compra de vacinas e a recusa de concretizar cuidados – exemplo macabro foi a falta de oxigênio para doentes em Manaus, deixando a cidade asfixiada; e um número elevado de crianças e adolescentes em condição de orfandade – pelo óbito do pai e/ou mãe ou de outro/a cuidador/a principal, como avó, avô, tia, irmã(o) mais velho, dentre outros.
Vale sempre reiterar: desde julho/2021, a AOCA (Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19) vem congregando forças sociais amplas e diversificadas – entidades, coletivos, sindicatos, organizações e pessoas físicas – empenhados em retirar da invisibilização e do esquecimento esses sujeitos sociais, para que recebam o trato público adequado a vida digna.
Já no decorrer da CPI referida, foi entregue em mãos, pelo deputado Renato Roseno, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alece, o documento ÓRFÃOS DA COVID-19: PLANO ESTRATÉGIO-OPERACONAL PARA SEU CUIDADO E PROTEÇÃO IMEDIADOS. Elaborado coletivamente, reivindicávamos, já àquela época, que constasse no Relatório, conteúdo substancioso referente à Orfandade por Covid-19 e sua imediata efetivação.
Desde então, são contínuas e intensas as nossas incidências junto aos Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário), nos três níveis, concretizados em solicitações de audiências públicas; encaminhamento de documentos com reivindicações, sugestões, alertas, propostas e disponibilidade para dialogar e trabalhar conjuntamente; efetivação de audiências públicas no legislativo municipal, estadual e federal, para que vozes das forças sociais por nós agregadas fossem ouvidas e transformadas em ações governamentais. Pouquíssimas vezes, conseguimos ver ecoadas tantas propostas, tanto comprometimento de tantas entidades e pessoas físicas. Fiquemos com dois exemplos: até agora, desconhecemos iniciativas, por parte das instituições públicas, que se voltem para busca ativa em todo o território cearense – macrorregiões, seus 184 municípios, e nem mesmo campanha (in)formativa sobre pauta tão sensível, para localizar essas crianças e adolescentes.
Como não nos afligirmos – técnica, política e humanamente, com tamanha lacuna temporal e espacial, ao levar em conta que tivemos, no Estado, em torno de 29 mil óbitos atribuídos a Covid-19, e em Fortaleza, por volta de 11 mil? Por que, até hoje, continuamos sem resposta para quatro perguntas básicas: quem são as crianças e adolescentes em orfandade por Covid-19 no Ceará? Quantos são? Onde estão vivendo – nos municípios, distritos, bairros, territórios; onde mais se concentram? Por fim: como estão (sobre)vivendo, em termos materiais, e também em suas subjetividades e sociabilidades?
São questões que nos intrigam profundamente. Tudo em torno de que é urgente agir o mais rápido possível, para evitar que o desamparo decorrente da condição de orfandade não se agrave ainda mais pela Orfandade Institucional em que se encontram.
Confesso que, muitas vezes, me percebo com dificuldade de falar sobre esse assunto, ao trazer à memória, por um lado, o sofrimento que tenho sido testemunha de tantos e tantos que perderam entes queridos, além de pessoas significativas em outras esferas, como professores, profissionais de saúde, lideranças nos territórios. Por outro lado, me sinto inundada de indignação, pela constatação vivenciada – no coração e na mente - de tanta indiferença, inação e/ou omissão de instituições e agentes públicos, a quem cabe a responsabilidade de proteger integralmente sujeitos sociais que se encontram na infância ou na adolescência, e continuam imersas nas tantas implicações da ruptura do vínculo primordial de suas vidas, fonte de afetividade, cuidados cotidianos e provisão de recursos materiais.
Difícil, muito difícil mesmo, entender a lacuna de mais de cinco anos e seis meses – do início da Pandemia e da Orfandade até os dias atuais, sem que medidas significativas tenham sido adotadas para, de fato, retirar essas crianças e adolescentes da Orfandade Institucional – violação ou ameaça de violação de direitos, e trata-los como prioridade absoluta, tanto na destinação de recursos como na efetivação de políticas públicas que correspondam aos direitos previstos na legislação e nos valores humanitários.
Desamparo de crianças e adolescentes pelo Poder Público (agentes e instituições) não condiz com Democracia. Relegá-los à invisiblização e ao esquecimento tão pouco rima com Soberania Nacional.






