Em novembro de 2015, eu estava no primeiro ano do meu primeiro mandato de deputado estadual. Na madrugada do dia 12, tinha chegado muito cedo ao Plenário. À época, as inscrições de oradores eram presenciais e devíamos estar na Alece antes de o sol nascer. A notícia da chacina chegou naquele momento.
Lembro de um ex-parlamentar que - infame e irresponsável - disse “lá não tem santo”. Justificando as mortes. À altura, já circulava a notícia que havia sido uma chacina de vingança, motivada pela morte - também trágica - de um soldado PM na noite anterior, de 11 de novembro. Ali começou a trilha longa e tortuosa das mães e sobreviventes da Chacina do Curió. A maior chacina policial da história do Ceará
Aquelas mães e pais, avós, companheiras, namoradas, irmãs e irmãos foram atravessados por uma noite de horror. Dezenas de agentes de segurança, agentes da Lei e do Estado, mataram a esmo 11 pessoas inocentes e deixaram mais 7 vítimas sobreviventes, algumas delas com sequelas permanentes. Naquele momento, a sociedade cearense inteira se tornava vítima de um irracional atentado de crueldade e vingança.
A primeira luta foi pela absolvição moral de seus filhos. A covardia dos infames fez espalhar que a chacina era “briga de gangue” e que, como disse o ex-deputado, os jovens vitimados “não eram santos”. Aqui a primeira reflexão: no Brasil, há corpos que, pela sua classe, raça, geração, gênero e CEP, podem morrer.
Naquela manhã e nos dias que se seguiram nesses longos 10 anos, conheci a história das vítimas e de suas famílias, conheci especialmente mulheres - as mães do Curió - que me ensinaram muito e até hoje me emocionam pela força, resiliência e resistência.
Não foi fácil investigar a maior chacina do Ceará, produzir a prova. Aqui é necessário destacar: se não houvesse mecanismos de controladoria, perícia técnica e decisão, não teria inquérito. As famílias, as mães foram fundamentais. Elas movimentaram energia necessária para superar a longa trajetória de impunidade que envolve esse tipo de barbárie em nosso estado.
É necessário registrar o compromisso do trabalho policial em investigar um crime cometido por agentes de segurança e todo o esforço de acolhimento do sistema de justiça, que mudou depois do caso do Curió (com o fortalecimento e a criação de programas de acolhimento por parte da Defensoria Pública, do Ministério Público, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder Executivo).
Por fim, e não menos importante, registrar também a presença incansável das entidades da sociedade civil, articulada em muitas organizações que pressionaram o Estado e deram suporte às mães ao longo do processo.
Foi um grande périplo: provocar organizações nacionais e internacionais, cobrar celeridade e profundidade dos procedimentos. Ao mesmo tempo, exigir atenção psicossocial às vítimas, cuidar dos sobreviventes. Essas mães percorreram o Brasil e levaram aos quatros cantos a denúncia da chacina do Curió e um grito por justiça.
Seguirei carregando comigo frases como “preciso sorrir por mim e pelo meu filho”, “quero que nenhuma mãe passe pelo que eu passei”, “não tenho medo porque meu medo foi enterrado com meu filho naquele novembro”, "eu paguei pela bala que matou meu filho". São frases que atravessam a alma, dizem muito da humanidade monumental dessas mulheres e fazem a ecoar a importância da decisão de hoje no Tribunal do Júri.
Nunca se comemora uma sentença penal condenatória. Mas a impunidade é ferida aberta. Por isso, preciso agradecer tudo que essas mulheres fizeram por nós. Nos entregaram a possibilidade de sermos uma sociedade em que a violência de Estado seja respondida com a força humana da justiça.
Justiça não é vingança. Justiça é resposta. Hoje encerrou-se uma etapa. 10 anos depois. Nos seus espíritos e corpos, essas mães fizeram a transubstanciação do luto. Luto é verbo! “Eu não queria ser Mães do Curió”. Elas fizeram da sua maior dor um ato de amor. Porque lutar por justiça é um ato de amor ao futuro.
Em tempo: curió é um pássaro que tem um canto bonito. Ele está na memória do povo cearense. Dez anos depois, podemos querer que curió seja sinônimo de um canto de justiça.